antes do amanhecer

a dualidade entre o efêmero e o imenso

Isabela Jayme
3 min readNov 16, 2020

Se você conhece o filme Antes do amanhecer, provavelmente pensou que esse texto teria alguma relação com ele. Poderia, porque é um dos meus favoritos da vida. Em vez dele, porém, o que quero falar é sobre uma sensação específica.

Aproveitando as referências cinematográficas, se você assistiu O famoso destino de Amélie Poulain, talvez se lembre daquelas suas sensações favoritas, como mergulhar os dedos num saco com grãos de feijão. Eu também gosto dessa, mas existe uma outra que me vem com muita intensidade. Chamo ela de “antes do amanhecer”, “afinação da orquestra” e alguns outros nomes que vou inventando, ou melhor, associando. Depende da ocasião. Ela é um presságio, uma anunciação, uma fagulha.

Sabe aquele momento que antecede um concerto? Quando todos os instrumentos da orquestra falam juntos, buscando um equilíbrio entre si? Feche os olhos e tente escutar ele agora. Para muitas pessoas, é apenas uma afinação, um sinal para ficar em silêncio, o grande espetáculo vai começar. Para mim, é um dos momentos mais perfeitos.

É o marco de uma transição, mas é muito mais que isso. Nesse instante, a sensação que tenho é a de infinito. Uma estranha dualidade entre o efêmero e o imenso. Perceber o atravessamento que ocorre para tudo o que era antes se transformar em tudo o que vem depois. É a leveza da ruptura que me prende, me fascina, concentra toda minha atenção ali, num único espaço-tempo. Nada mais importa.

Me sinto assim todas as vezes que presencio uma orquestra. Sinto algo muito parecido nos breves instantes em que tudo está prestes a mudar. Como o tempo que congela em Peixe Grande quando aqueles dois olhares finalmente se encontram. Essa é a sensação que tento definir em palavras. Palavras que causem efeitos, provoquem sentimentos, que sejam quase sensoriais, palpáveis, materializáveis. Consegue sentir?

Pense naquelas horas mais avançadas da madrugada, antes do amanhecer, quando você provavelmente deveria estar em casa, mas não está. Você está na rua, quase não há ruídos ou perturbações, as pessoas estão dormindo em suas casas, os carros estão estacionados. O céu está limpo e o que se escuta são alguns poucos pássaros. As estrelas já começaram a se apagar, já não é mais tão escuro, nem claro. As cores vão se fundindo e mudando a cada segundo. É um prenúncio do dia que chega, mas ainda não é. Também não é noite. Limites tênues que se embaralham, minutos em que um e outro se confundem. São a mesma coisa.

E você está ali, desperto, entre esses dois mundos, entre fim e começo. Ao mesmo tempo, não está em nenhum. É um universo particular, que existe brevemente. Você sabe que logo ele irá desaparecer, mas nele tudo parece possível. Se não prestar atenção, ele já passou e você nem percebeu.

Suas formas são várias. Pode acontecer numa corrida de avião que ganha velocidade até se soltar do chão. No pulo que se dá de uma altura em direção às águas geladas do mar. O pulo, a adrenalina, a queda, o frio na barriga, o arrepio em cada centímetro de pele. O mergulho já é outra coisa.

A força em virar o corpo depois de alguns passos de uma despedida e dizer “espera”. A coragem em voltar. A decisão de tornar o pensamento em fala. O atrevimento em se perguntar “é melhor falar ou morrer?” e preferir dizer, mesmo sabendo que depois também se morre um pouco. A escolha é mais forte que você.

A energia que envolve um primeiro olhar cruzado entre dois cantos afastados. A eletricidade no ar no átimo que precede um primeiro beijo. A faísca que percorre o corpo num primeiro toque.

A sensação de que o corpo é como o estádio do Maracanã lotado onde todas as pessoas estão batendo os pés no chão freneticamente. Eu sei que você também já sentiu essa vibração. Como você a chama?

Afine seus instrumentos. Congele os instantes imensos. Eles mudam tudo.

Tudo o que vem depois é infinito.

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Isabela Jayme

experimentadora criativa. leitora entusiasta. expressadora artística. registradora de memórias. roteirista de viagens. testando escritas múltiplas.