desculpa, não é você, é a tela

Isabela Jayme
2 min readDec 29, 2020

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Os meses de janeiro e fevereiro não foram 2020. Não, foram meses perdidos no tempo, desconexos, a parte, realidade separada, não anteciparam o que veio depois (ainda bem). 2020 começou em março. 2020 foi a pandemia. Não viver na pandemia, mas viver a pandemia. 2020 ainda vai se arrastar para 2021.

Janeiro foi há dois anos. Abril foi ontem e novembro também. Eu não sei mais diferenciar o que aconteceu em qual mês. Talvez seja isso, a falta de marcos, datas a combinar, a falta de lugares, de pessoas, de abraços, toques e cheiros e cores e sol na cara e chuva no corpo e vento nos cabelos.

E lágrimas em público e tropeçar na calçada do centro e passar a mão nas lombadas dos livros da biblioteca. E estar na rua e olhar nos olhos e dividir bebida no mesmo copo e dançar na pista e lembrar o que é ressaca no dia seguinte.

Encontros marcados e encontros acidentais. Aqueles arquitetados por sincronicidade e aqueles outros em que se finge não ver. Os encontros em sonhos não contam, mas eles falam. Quantos dias faltam pra gente se encontrar acidentalmente? Você vai dizer que me viu?

To com saudades, mas não aguento mais olhar pra tela. Ler, interpretar, digitar, ver, assistir, conversar, tentar entender. E tentar sentir, comunicar, traduzir o meu e o seu mundo, como se fosse de alguma maneira possível. Não tá fácil aqui, cansei, posso desistir por hoje?

Ontem recebi uma convocação para uma conversa: “protocolei no cartório até”. Desculpa, não é você, é a tela.

Me custa aceitar esse novo modo de operar, e por favor não chama de “novo normal”.

Online o tempo todo, desconectada muito tempo. O mundo físico faz falta para decifrar sinais, viver na pele e nos ossos, remover as máscaras, enxergar sem filtros. Separar intuição e delírio.

Tive que morrer muito em 2020. Aprender a dança constante das fases. Mergulhar em águas profundas. Voltar para recuperar o fôlego. Escutar o medo e caminhar com ele. Deixar vir e ir embora. Desapegar. Não se perder, mas encontrar espaço. Terra recém arada, vazio, espaço em branco. É nele que cabe qualquer coisa que se queira. Só quando se morre que se vive de novo. Será que se Belchior estivesse aqui, diria ano passado eu morri e nesse ano morro de novo?

Tive que deixar morrer para ter outros vários começos em 2020. Às vezes é difícil lembrar que, mesmo chorando pra cachorro, coisas boas também aconteceram nesse ano pandêmico, caótico e desgovernado. Maluco pensar que foi nesse cenário que, pense, eu me fiz casa.

Um amigo perguntou se a quarentena fez eu me sentir mais introvertida nesse ano. Eu respondi que sim, mas no bom sentido.

p.s: quando isso tudo passar, você já sabe onde me encontrar.

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Isabela Jayme

experimentadora criativa. leitora entusiasta. expressadora artística. registradora de memórias. roteirista de viagens. testando escritas múltiplas.