porque é domingo

Isabela Jayme
2 min readOct 9, 2022

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É domingo e o ar é morno e parado. O único som que corta o silêncio são os pássaros que voltaram depois do inverno. Depois de estender as toalhas, vai até a cozinha e coloca a água para ferver. Abre a geladeira e pega tudo que está a ponto de estragar. Uma abobrinha pequena, um dente de alho, um punhado de tomates cereja já muito vermelhos. Abre a janela e corta três galhinhos de manjericão com uma tesoura. Sempre os de baixo, nunca os de cima. Toma todo o cuidado para não matar a planta precocemente, como já aconteceu mais de duas vezes. É o contrário da avó, que puxa sem medo os ramos de alecrim que estão mais próximos das mãos. E mesmo assim, os pés de alecrim, manjericão e outros vizinhos do jardim da avó estão sempre mais fartos e cheios que os dela. Também queria saber como dosar a cautela acreditando no que vai permanecer.

Acende o fogo e deixa a frigideira esquentar. Derrama um fio de azeite e joga os cubos de abobrinha que cortou. Escuta o primeiro chiado e aguarda. Sabe que ainda não é tempo de mexê-los. Só depois que douram é que joga o alho picado. Mistura rápido para não queimar. Abaixa o fogo. Coloca por fim os tomates cortados ao meio e aumenta o fogo novamente. Percebe que já havia jogado fora o pacote do resto de macarrão do armário, não sabe o tempo do cozimento. Então de instante em instante olha, mexe, prova. Talvez mais dois minutos para dar o ponto. Ainda não. Mais um. Não mais. Escorre a água e envolve o macarrão, o molho e as folhas de manjericão. Coloca também as raspas de um limão siciliano do tamanho de uma laranja Bahia que ganhou e cansou de esperar para usar. Gosta da acidez que ele tem e de como combina com a abobrinha. E também com o pedaço de queijo quase só casca que ainda tem para ralar. Depois de comer, enquanto lava a louça e vê a água escorrer pelo prato, pensa para além da porta geladeira

que outras coisas estão a ponto de se perderem
quais não têm mais retorno
e quais ainda têm tempo de se salvarem

o que ainda guarda a sorte de se transformar

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Isabela Jayme

experimentadora criativa. leitora entusiasta. expressadora artística. registradora de memórias. roteirista de viagens. testando escritas múltiplas.